A fluidez e o enraizamento de vidas da floresta definem o imaginário com o qual Miguel Penha Chiquitano elabora um conjunto expressivo de paisagens do Centro-Oeste brasileiro. Sua prática acolhe silêncios polifônicos, particulares da floresta, traduzidos pelo artista em composições que reúnem o clamor de vidas ameaçadas, as quais se unem aos rituais de comunidades indígenas e seres invisíveis que habitam o Cerrado, a Amazônia e o Pantanal, os três biomas do Mato Grosso.
Silenciada ao longo de décadas, sua obra precisou superar o medo que sua mãe, do povo Bororo, e seu pai, imigrante Chiquitano que deixou a Bolívia para viver no Mato Grosso, sentiram ao longo da vida sendo sobreviventes do extermínio de grande parte da população indígena da região. Realizada em anotações e rascunhos sobre papel, o corpo de obras de Penha Chiquitano é resultado do período em que catalogava, mata adentro, as qualidades plásticas e mágicas presentes nos biomas do Centro-Oeste.
A profundidade de suas paisagens é tratada com o zelo de quem qualifica a infinitude da floresta como templo sagrado, presente nas pinturas como uma névoa azulada. A experiência equivale ao instante em que o senso de direção é substituído pelo abraço acolhedor da grande mãe, que jorra água das entranhas da terra, promove a cantoria de pássaros, preserva a diferença dos biomas e transforma a presença sublime da luz sobre as folhas que se tocam com o suave vento a carregar os rios voadores para outros cantos do mundo.
Na ocasião de A sapopema da Samaúma / O desaguar do Igarapé, Miguel Penha Chiquitano dedica seu olhar a duas das inumeráveis dádivas oferecidas pela grande mãe. A primeira é evocada pela sapopema, a raiz aparente da Samaúma, árvore sagrada tida como a rainha da floresta. A monumentalidade de sua estrutura achatada serve de parede para cabanas dos povos da floresta. Ela é casa e também provedora de água aos rios voadores e às plantas com raízes menos profundas.
Contrariamente, os igarapés são rasos, estreitos e fluem lentamente rumo aos rios caudalosos que atravessam a Amazônia. Sua lentidão e rasura ampliam a vida desses grandes cursos d’água. Confluir é o que complementa a existência de ambos. Ao observar as correlações entre o movimento dos igarapés e a estabilidade das raízes, a exposição de Penha Chiquitano alude tanto aos olhos d’água, protegidos por matas ciliares que se movimentam em direção a rios amazônicos, quanto à profundidade de enraizamentos, que servem de casa e são responsáveis por lançar na atmosfera correntezas que sobrevoam a floresta. Atento à força sublime que integra raiz, seiva, flor e semente, A sapopema da Samaúma / O desaguar do Igarapé é um convite ao reflorestamento mental e ao fluxo contínuo, da nascente ao oceano.